Rush: Uma análise da letra de “The Trees”

Rush: Uma análise da letra de “The Trees”

 

Por Micael Machado
Quando Neil Peart juntou-se ao Rush em 1974, os dois outros membros da banda (Alex Lifeson, guitarras, e Geddy Lee, baixo e voz – e, posteriormente, teclados e sintetizadores) logo perceberam que aquele sujeito era diferente deles. Ao invés de participar das festas e brincadeiras que ocorriam durante as viagens entre os shows, Peart preferia ficar lendo livros sobre os mais diversos assuntos. Ao perceberem o rico vocabulário e a maneira que o então novo baterista do grupo usava para se expressar, Lee e Lifeson pensaram: “esse cara deve conseguir fazer umas letras legais”. Assim, já no seu primeiro disco com o grupo, o seminal Fly By Night, de 1975, Peart começou a escrever algumas letras para as canções da dupla de frente do Rush, até tornar-se o letrista oficial do grupo no álbum 2112, de 1976, posição que ocupa até hoje.
Muito já foi escrito por aí sobre as letras e as fases dos temas escolhidos por Peart para suas composições. Desde preocupações com o futuro da humanidade, passando pelo tópico da convivência e relação entre as pessoas, o desenvolvimento da tecnologia e até assuntos ligados à espiritualidade (ou à falta dela), o baterista provou que, em termos líricos, é tão capaz e excepcional quanto o trabalho que executa em suas peles, pratos e outros itens. Mas, de todas as letras da vasta discografia do grupo, nenhuma nunca me foi tão próxima e querida quanto a de “The Trees”, faixa do excelente Hemispheres (1978), uma belíssima metáfora abordando, através do conflito entre duas espécies diferentes de árvores, as dificuldades das relações entre as pessoas, e os desastrosos resultados que surgem quando os interesses pessoais sobrepõem-se aos interesses comuns.
Neil Peart: gênio tanto com as baquetas quanto com as palavras!

A letra começa afirmando que: “Há inquietação na floresta / Há problema com as árvores / Pois os bordos querem mais luz do sol / E os carvalhos ignoram seus argumentos”. Dois tipos de árvores discutindo pelo direito à luz solar, que lhes faz crescer e manter-se sadias.

A seguir vem o trecho: “O problema com os bordos / (e eles estão totalmente convencidos que estão certos) / Eles dizem que os carvalhos são muito altos / E eles capturam toda a luz. / Mas os carvalhos não podem apoiar seus sentimentos / Se eles gostam do jeito que são feitos. / E eles se perguntam por que os bordos / Não podem ser felizes em suas sombras?”. Os carvalhos são mais altos que os bordos, e, dessa forma, a luz não chega até estes. Mas esta condição não é um problema para os mais altos, que não conseguem ver qual a dificuldade de os bordos viverem à sua sombra.

Quantas vezes vemos nas relações humanas alguém que possui algo (poder, dinheiro, carisma, relações) que acaba afetando e prejudicando a outros que não possuem tal bem (material ou não)? Muitas vezes é difícil para quem se sente prejudicado explicar a quem lhe prejudicou o motivo de seu desconforto, pois quem não sofre o problema não consegue imaginar suas consequências, muitas vezes não tendo a empatia necessária para se colocar no lugar da outra pessoa, como acontece na história com os carvalhos em relação aos bordos.

Seguindo com a letra, “Há problema na floresta, / E as criaturas todas fugiram / Enquanto os bordos gritam “opressão” / E os carvalhos, apenas agitam suas cabeças”. Através de argumentos racionais (e para eles corretos), os bordos tentaram convencer os carvalhos a lhes dar mais luz, mas estes não compreenderam o pedido das árvores menores, e se recusaram a ceder. Os bordos então partiram para a ofensiva, o que afetou toda a floresta, fazendo com que as outras criaturas fugissem temendo o conflito.
Não é isso que muitas vezes acontece entre humanos? Uma discussão racional parte para a violência e as vias de fato, com consequências muitas vezes trágicas, e aqueles que estão em torno, ao invés de tentar ajudar, buscam o instinto básico de autopreservação, fugindo ou se escondendo do confronto, tentando se proteger, e deixando os “brigões” resolverem seus próprios problemas.
A história chega ao ponto do conflito, com as frases: “Então os bordos formaram um sindicato / E exigiram direitos iguais / ‘Os carvalhos são muito gananciosos; / Nós os faremos nos dar luz.’” Os bordos se organizaram, e foram exigir que suas demandas fossem atendidas. Assim como muitas vezes ocorre entre os trabalhadores, que apenas coletivamente conseguem exigir seus direitos perante os poderosos, tendo de, para isso, frequentemente apelar para greves e manifestações.

O relato termina dizendo que “Agora não há mais a opressão dos carvalhos, / Pois aprovaram uma lei nobre, / E as árvores são mantidas todas iguais / Por machadinhos, machados e serrotes.” Ou seja, alguém com um poder maior do que os dois (e que não é citado na letra, mas fica subentendido como o ser humano) decidiu a questão, de uma forma que não satisfez a nenhum dos dois, deixando-as todas do mesmo tamanho através do corte, mas prejudicando a ambos os lados, que agora não podem mais crescer e desenvolver-se.

 

Rush na época de Hemispheres: Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart
É o resultado que ocorre na maioria das disputas onde nenhum dos lados admite ceder. A conclusão da disputa acaba sendo prejudicial para todos, sem que ninguém ganhe, pois, como ninguém queria perder, acabaram perdendo todos.
O diálogo é a melhor solução sempre. Tentar entender as argumentações do outro lado e fazê-lo entender as suas é sempre melhor que tentar impor a sua vontade, muitas vezes usando para isso a força. “Bater pé” e ser irredutível pode levar todos a perderem, seja na relação entre um casal, entre colegas, entre patrões e funcionários ou entre pessoas da mesma família. Compreensão e empatia são sempre melhores que discussões e violência, e nada é melhor do que saber reconhecer que se está errado, mesmo que no início pensássemos diferente. Se isso não ocorrer, podemos acabar todos sendo mantidos iguais, não de uma forma que seja boa para ninguém, mas através dos diversos “machadinhos, machados e serrotes” que a vida coloca em nosso caminho.
Como sempre, cabe lembrar que esta é a minha interpretação da letra, sendo possíveis e cabíveis interpretações diferentes para a mesma, a qual é, para mim, a mais significativa e melhor letra da longa carreira desta que é uma das mais importantes bandas da história do rock, o trio canadense Rush.

11 comentários sobre “Rush: Uma análise da letra de “The Trees”

  1. Para mim, desde que a conheci, "The Trees" soou como uma referência à faceta mais autoritária do comunismo, onde o direito de ser e agir como sua própria natureza acaba por ser diversas vezes tolhido. Posteriormente, conhecendo mais sobre história e levando em conta a época na qual "The Trees" foi registrada (1978), veio à mente uma referência ao Khmer Rouge, partido comunista que esteve no comando do Camboja na segunda metade dos anos 70, praticando uma política de eliminar os detentores do conhecimento, fazendo com que o país regredisse ao nível de uma sociedade agrária primitiva.

  2. Essa relação dos USA e o Canadá é bastante interessante, ainda mais o Rush sendo um trio canadense, e toda a relação cultural que existe entre os dois países (com os USA desprezando o Canadá, que por sua vez acha os americanos muito pretensiosos).

    É um ângulo de interpretação bem legal de ser explorado.

    Por isso que acho legal "viajar" em letras assim, sempre se pode interpretá-las de modos diferentes e interessantes. Embora as palavras sejam sempre as mesmas, seu significado pode ser bastante diferente dependendo de quem lê.

  3. Verdade. O Rush é mestre em nos presentear com essas letras cheias de interpretações e ambiguidades.

    Bom, para não perder a viagem vou deixar uma sugestão para um próximo "letras analizadas" para os organizadores do blog.
    Que tal uma analise profunda de 2112?

  4. Realmente, Marcoré, o 2112 merece uma bela analisada. O problema é que para isso seria necessário ler a obra de Ayn Rand que inspirou Peart, coisa que acredito que poucos por aqui chegaram a ler (se é que algum de nós chegou a ter acesso, o que, por exemplo, não foi o meu caso).

    Mas a dica está dada!

  5. Muito interessante a análise. Eu sempre vi The Trees com um tom politico, e essa anlise do Micael confirma um pouco disso. A melhor letra do Rush para muitos é Closer to the Heart, mas particularmente, eu prefiro a sequência viajante de Cynus X-1.
    Engraçado que alguns acham a melhor letra os gritos de Geddy Lee durante a versão de La Villa Strangiato no Exit Stage Left, hehehehe

  6. O encerramento eh interessante, mas a "moral da história" fica me parecendo aquele pensamento aristocrático que eu encontro em muitos textos de Filosofia, como os do Nietzsche. Inclusive, a forma como o Peart colocou as coisas dá a entender que a superioridade de alguns eh algo que vem de natureza..

  7. Tive de parar de ler. Falta de inteligência pra apreciar esse artigo. O que li foi tão fantástico que preciso pausar antes de prossegui.
    Não há o que dizer, artigo tá muito bom e sensivelmente visto. Ouço a música mas não presto atenção em letras (obviamente das que são minhas favoritas, procuro sempre o significado) … assinalo mais uma que certamente estarei analisando.
    Minha favorita em letra e som é Red Sector A, só que não sei quem compõe.
    😀

    O nosso senhor Jesus Cristo o acolha em Sua glória, nobre Neil.
    🙁

  8. Essa música usei em aulas interdisciplinares no Ensino Fundamental.
    Letra, tradução, metáfora e música.
    Daí um dia a direção da escola tentou limitar as cores das calças dos estudantes… E eles se rebelaram! Aí passaram pela minha sala e disseram: professor! Somos os Bordos!!
    Kkkkkk
    Fiquei quietinho com um sorriso oculto.

    1. Excelente relato, Jordânio! São pequenas vitórias assim que fazem a vida valer a pena, não é mesmo? (Sim, fiz um trocadilho internacional com o título de “One Little Victory”, do mesmo Rush. Não consegui resistir…”

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